Mathieu Sapin: "Mesmo em privado Hollande nunca diz palavrões"
No seu livro conta que comprou os sapatos que leva no primeiro encontro com François Hollande no Eliseu durante umas férias em Portugal. É verdade?
Na Modalfa, sim, Compro muita roupa na Modalfa (risos!)
Podemos então concluir que tudo o que está no seu livro Le Château é verdade?
Sim, é tudo verdade. Tudo. Por isso é que meti a fotografia no fim [do autor com Hollande no Salão Dourado do Eliseu]. Porque há muitas pessoas que pensam que é uma invenção. E não, foi exatamente assim.
Conseguiu o acordo de Hollande para passar um ano no Eliseu depois de lhe enviar um SMS...
Antes deste livro, fiz uma BD sobre a campanha presidencial de 2012. Foi complicado porque não conhecia de todo a política francesa. A minha sorte foi que antes, em 2011, tinha feito uma BD no Libération - chamada Journal d"un Journal. E depois o Libération propôs-me seguir a campanha presidencial. Eu queria seguir um candidato com o máximo de hipóteses de passar à segunda volta. E não havia muitos. Hollande era o que tinha as melhores hipóteses. Por isso mandei mensagens, falei com pessoas que conhecia para me ajudarem A minha sorte foi que comecei cedo, alguns meses antes das eleições. Eles acabaram por me dizer que sim, que podia fazer uma BD. A campanha correu bem.
Teve muito contacto com Hollande durante a campanha?
Sim, sim. Até estava no gabinete dele quando foram revelados os resultados. Eu tinha uma relação um pouco especial com ele. Mas quando decidi fazer um livro sobre o Eliseu, optei por passar pela via hierárquica. O que é muito complicado porque a BD não é uma coisa habitual na política. Pelo menos nos bastidores. E amigos jornalistas disseram-me: "Sabes, Hollande, se queres que te dê autorização, o melhor é falares diretamente com ele". Por isso deram-me o número de telemóvel. E pronto. Não sei como é em Portugal, mas em França não é uma coisa extraordinária ter o telemóvel do presidente. Muitos jornalistas têm-no. E perguntam se vai declarar guerra e assim. E ele responde. Hollande gosta de fazer tudo em direto.
É uma pessoa acessível?
Há sempre gente à volta dele a fazer barreira, mas quando temos contacto direto com ele, sim, é acessível.
Hollande pode surpreender e vencer as presidenciais de 2017?
Sim, acho que sim. Nas últimas eleições, de 2012, Hollande um ano antes só tinha 4% de intenções de voto. A sua grande força é que não o vemos vir. É o contrário de alguém que faz grande espalhafato. Não digo que vai ser reeleito, mas digo que é possível. A situação em França é muito complicada. A extrema-direita é muito forte. Há muitas pessoas dispostas a votar em Marine Le Pen, mas há muitas que nunca votarão nela. Por isso a minha teoria é que se Marine Le Pen passar à segunda volta, o seu adversário será eleito. Entre Marine Le Pen e Hollande preferem reeleger Hollande. E penso que este é o cálculo que o presidente também está a fazer. E espera que Nicolas Sarkozy se apresente porque os franceses detestam Hollande mas também detestam Sarkozy. E detestam um pouco mais Sarkozy.
A BD política está na moda em França. Quay d"Orsay inspirou um filme. Gostava de ver Le Château adaptado ao cinema?
Gostaria, claro. Mas estou agora a trabalhar no projeto de um filme, que até está adiantado. Já acabámos o cenário e o casting. Mas não uma adaptação de Le Château. É uma ficção em torno de uma campanha presidencial. É inspirado no que vi durante a campanha.
Mas se um dia adaptarem Le Château ao cinema quem gostava de ver no papel de Hollande?
Para interpretar Hollande... Há um ator que já o fez, que é parecido com ele, mas não é muito conhecido... Chama-se Patrick Braoudé.
E a sua personagem?
Quanto a mim... podia ser... não sei... Gosto muito de um ator chamado Denis Podalydès, mas é um pouco mais velho do que eu. Ele já interpretou Sarkozy. Os franceses adoram a política. Não sei como é nos outros países. E há outra coisa muito francesa: o paradoxo entre a democracia e a nostalgia da realeza. É O Castelo [Le Château], o lado monárquico. As pessoas que trabalham no Eliseu chamam-lhe o Castelo.
O Journal du Journal é passado na redação do Libération e em Le Château os jornalistas têm um papel central. Com quem foi mais difícil trabalhar: com a imprensa ou com os políticos?
Os jornalistas odeiam-me. Quando ia falar com eles, achavam que não iam entrar no livro. Não era difícil falarem porque estavam descuidados. Quando viram o livro vieram perguntar. "Mas porque é que me meteste aqui?". Eu não ponho nomes, mas fisicamente são reconhecíveis. Mas houve muitos que gostaram. É feito com humor, não com maldade. Os políticos é mais difícil. Não é que me travassem, mas têm muito cuidado. Estão sempre controlados. Sobretudo Hollande. Nunca se descai. Mesmo em privado nunca - quase nunca - diz palavrões. É uma das críticas que lhe fazem: é demasiado robótico. Falta-lhe espontaneidade. Eu falei disto com ele. E hoje em dia com o Twitter, com tudo, quando um político diz uma parvoíce, acabou. Em França houve um trauma com um conselheiro de Nicolas Sarkozy, chamado Patrick Buisson, que gravou as conversas quando trabalhava no Eliseu. E quando se zangou com Sarkozy as gravações saíram nos media. Ouvia-se Sarkozy a dizer horrores. Depois disso todos têm muito cuidado.
Sentiu algum constrangimento por parte do pessoal do Eliseu?
Não, a única coisa é que tinha de comunicar sempre que queria ver alguma coisa ou ir a algum lado. Mas nunca me disseram que não. Deixaram-me fazer o que queria. No fim dei-lhes o livro para lerem - como faço sempre. Mas ler não quer dizer intervir. Pediram-me para mudar uma única coisa: os nomes dos guarda-costas de Hollande. Eu disse que não mudava, para não deturpar as coisas. Prefiro pôr um quadrado preto em cima dos nomes.
Qual o momento que mais o surpreendeu em 12 meses no Eliseu?
O que mais me marcou foi o 7 de janeiro e o 11 de janeiro. O 7 porque foi horrível. Foi muito assustador estar em Paris naquele momento [ataque contra o jornal satírico Charlie Hebdo], porque até ao dia seguinte não sabíamos se haveria outros ataques, o que ia acontecer... O dia 11 foi marcante não pelo horror, mas pela estupefação. Porque os chefes de Estado vieram todos. É a última página do meu livro: sou eu na sala com todos os chefes de Estado. Foi como uma party de chefes de Estado, todos a beber um copo.
[citacao:O dia 11(de janeiro) foi marcante não pelo horror, mas pela estupefação. Porque os chefes de Estado vieram todos. É a última página do meu livro: sou eu na sala com todos os chefes de Estado.]
Como era o ambiente no Eliseu após o ataque ao Charlie Hebdo?
Eu achei as pessoas com muito sangue frio. Não houve pânico. Foi uma espécie de... as equipas reagiram bem, não houve uma atmosfera de pânico. Eu gosto sempre de mostrar coisas inesperadas. Por isso decidi desenhar uma pessoa que não sabia de nada. Ou a rapariga que se ocupa da imprensa e descobre a ver televisão, num rodapé que Nicolas Sarkozy vem amanhã ao Eliseu e diz "Ah bom, não fazia ideia".Mostra que as coisas estavam a acontecer muito depressa e as pessoas estavam um pouco ultrapassadas. Mas não houve gritos, nem choro. Havia jornalistas em lágrimas. Mas a equipa do Eliseu foi muito profissional.
Conhecia os cartoonistas do Charlie Hebdo?
Não. Conhecia Charb um pouco, já nos tínhamos cruzado mas não era alguém com quem me dava muito.
Qual foi a personagem mais difícil de desenhar?
A mais difícil...uhm.. Ele só aparece uma ou duas vezes, mas tive dificuldades com Nicolas Sarkozy. Cruzei-me poucas vezes com ele. Hollande é fácil.
Uma crítica ao seu livro é que não fala dos momentos polémicos...
Valérie Trierweiler!
Por exemplo. Foi opção, não falar da vida privada de Hollande?
Bom, há dois aspetos. Primeiro, a minha técnica é contar as coisas que eu vi. Não quero contar coisas que não vi. Quanto a Valérie Trierweiler, houve um momento em que a vida privada se tornou pública. Mas eu não tinha nada de mais para contar. Sobretudo depois do que ela contou no seu livro [Obrigada por este momento], que foi tão... Não podemos ir mais longe. Eu contei as poucas coisas que tinha, para contextualizar. Mas honestamente não tinha muito coisas interessante sobre o assunto. Quanto a Julie Gayet, nunca a vi. Não é que não quisesse falar dela, mas nunca a vi. Depois podia ter feito uma página ou duas... Tentar escavar. Falar com um guarda e perguntar se tinha visto Julie Gayet. Mas é verdade que me interessa menos.
Aparece como personagem do seu livro. Porque é que se desenhou pequenininho. Ainda mais pequenino que Hollande?
Quando estou num sítio assim, tento fazer-me esquecer. Que ninguém repare em mim. É a transcrição em desenho disso: da discrição. E funciona. O livro fala de um ano no Eliseu, mas passei lá mais. Cheguei antes e saí mais tarde. E havia pessoas que achavam que eu trabalhava lá. Perguntavam-me: trabalhas em que serviço? É assim que me sinto à vontade para desenhar. E também não sou muito grande.
Maior que Hollande?
Mais pequeno. Eu tenho 1,66m, ele deve ter 1,69m... como Sarkozy.
Enviou o seu livro ao presidente?
Sim.
Teve alguma reação, ele gostou?
Ele mandou-me uma mensagem que dizia: "Ri-me a lê-lo. Por vezes era um riso amarelo". Para mim, foi bom. O livro não foi feito para lhe agradar. Foi feito para informar as pessoas sobre o que se passa atrás dos muros do Eliseu.
Gostava de fazer este género de trabalho com outro líder mundial: Merkel, Obama, ...?
Mais do que Obama, gostava de Putin. No Kremlin. Gostava muito. Se tiver oportunidade, vou tentar. Mas é um exercício complicado, porque há pessoas que veem o que faço como um trabalho de comunicação. Não é uma encomenda, isso é garantido. Mas sei que ao aceitarem que eu faça este livro, é uma forma de Hollande dizer: "Estão a ver, somos muito abertos". É um cálculo da parte deles. Mas eu não quero saber. Porque respeitei a minha honestidade. Fiz as coisas como as queria fazer. E foi genial, adorei.
É casado com uma portuguesa. Segue um pouco a política portuguesa? Há algum político português que gostasse de desenhar?
Sigo um pouquinho. Mas conheço-os mal. Passos Coelho, Cavaco Silva. Conheço os principais...Não conheço os pequenos episódios, os pormenores. Mas estou a preparar uma BD que se passa em Lisboa.
Com que personagens?
Um detetive privado.
Um policial, então?
Sim. Mas como todas as minhas personagens é um detetive privado um pouco engraçado. É humorístico. O que quero sobretudo é fazer um retrato de Lisboa através desta história de crime. Queria fazer uma adaptação de Relíquia Macabra, mas com Humphrey Bogart a viver em Lisboa. Ainda estou a escrever, mas pelo meio sou forçado a falar um pouco de política. Sinto que em Portugal há uma história recente muito viva. Todos os acontecimentos dos anos 70, as pessoas que os viveram ainda estão vivas. É uma coisa que me interessa até porque toca na família da minha mulher.
Se tivesse de definir o seu trabalho, diria que é mais próximo da tradição franco-belga ou da tradição americana da Marvel?
Estou em equilíbrio entre as duas. Preciso das duas. Adoro os clássicos franco-belgas, mas também o underground americano, os comics. No que faço, gosto de mudar. Faço reportagens que mesmo sendo humorísticas são feitas de forma séria. Mas também faço coisas de ficção, mais absurdas. Gosto de alternar. Sou de signo balança, deve ser disso.
Está em Portugal para o Amadora BD, conhece a BD portuguesa?
Não muito bem. E não pode ser. Cruzei-me com alguns autores, mas não os conheço bem. Talvez esta semana seja uma boa oportunidade.
Qual é o seu próximo projeto?
É o cinema. O filme de que falava. Chama-se Le Poulain (O Potro). Não sei se a palavra tem o mesmo sentido em português, mas em francês é a cria do cavalo, mas usa-se para os jovens que estamos a formar para mais tarde nos sucederem. E o filme conta a história de um jovem que chega à política e vai viver a sua iniciação política. É uma comédia. Ele conhece uma mulher mais experiente que lhe vai ensinar tudo.
Fez um livro sobre Libération. E o DN, com 150 anos, um ex-diretor Nobel da Literatura e uma entrevista feita a Hitler, dava uma BD?
Claro. Mas a dificuldade de fazer uma investigação como as minhas é que tenho de ficar no sítio muito tempo. É o meu luxo. Para ser interessante teria de ficar pelo menos seis meses em Lisboa. E eu até gostava de viver em Lisboa uns meses.